TRIBUTO AO POETA. Vol. 2. Org. Angélica Torres Lima. Prefácio Silvestre Gorgulho. Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, Thesaurus, 2009. 188 p. 17X24 cm.
Apoio: Secretaria de Cultura do DF – FAC. Inclui textos: VIRIATO GASPAR, por Anderson Braga Horta; RONALDO COSTA FERNANDES, por Paulo José Cunha; LINA TÂMEGA PEIXOTO, por Maria de Jesus Evangelista; AFFONSO ÁVILA, por Antonio Miranda; RENATA PALLOTINI, por Adré Luis Gomes; HAROLDO DE CAMPOS, por
José Fernandes; AFONSO FÉLIX DE SOUSA, por Astrid Cabral; CECÍLIA MEIRELES, por Sylvia Helena Cyntrão e OSWALDINO MARQUES, por Margarida Patriota.
Extraído de p. 17-27:
A MATÉRIA DO CANTO DE VIRIATO GASPAR
Por ANDERSON BRAGA HORTA
"Hacéldama" foi o poema que me apresentou Viriato Gaspar, em 1984. Palavra hebraica, também grafada em português "Acéldama", designava o Campo do Oleiro, adquirido pelos sacerdotes com os trinta dinheiros que Judas recebera por sua traição e, arrependido, atirara no templo. Localizado em Geena, nas cercanias de Jerusalém, destinava-se a dar sepultura aos estrangeiros, passando a significar "campo de sangue." O poema, se bem o leio, é um enfeitiçante monólogo em que o poeta invoca o Verbo que, "semente de clarão", planta e lavra no "árduo território ... da carne", e a carne mesma, "lua magra a se espichar por entre os ossos podres na gamela do tempo": luta contra a morte, ou luta pela vida, luta que é, a um só tempo, alquimia poética e ascese espiritual.
A composição se apresenta em crispados decassílabos, dispostos em quadra livremente rimadas, e é notável pelo vigor do canto e pelo paradoxal rigor da forma sem peias. Passou a representar para mim, a assinatura do poeta. Um dos pontos mais altos de sua diversificada e brilhante criação, vencedor absoluto do Concurso João Cabral de Melo Neto, instituído no seio
da Universidade de Brasília, em 1984.
Viriato Gaspar nasceu em São Luís, Maranhão, em 7 de março de 1952, sendo seus pais o ferroviário Clóvis Roxo Gaspar e a dona de casa Sebastiana Santos Gaspar. Filho único de família proletária, pareceria improvável germinasse na alma do menino o talento poético. No entanto...
Mas, antes de repassar sua carreira poética, digamos alguma coisa de sua vida profissional, para deixar bem claro que o poeta, por mais que paire entre nuvens, tem, necessariamente, os seus momentos de pés no chão, para cumprir o mandamento bíblico de ganhar o pão com o suor do próprio rosto.
Jornalista profissional desde 1970, trabalhou por mais de vinte anos na assessoria de imprensa do extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR) e também na do STF, produzindo mais de cinco mil releases sobre matérias institucionais e julgados das duas Cortes. É funcionário de carreira, desde 13 de novembro de 1979, do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.
Foi assessor-chefe da Assessoria de Comunicação Social durante a presidência dos ministros Américo Luz e Antônio de Pádua Ribeiro. Sob sua gestão foi criada a revista Mérito, que chegou a ter lançadas quatro edições, hoje esgotadas. Foi também assessor de imprensa do primeiro Corregedor Nacional de Justiça do então recém-criado CNJ, em 2007.
Feito este breve interregno, voltemos ao poeta. A poesia devia estar desde sempre oculta em seu peito, mas ele só a descobriu aos 16 anos, no ginásio, quando em suas próprias palavras, teve o primeiro alumbramento poético, ao ler o episódio do Velho do Restelo, do Canto IV de Os Lusíadas,
de Luís de Camões. Seguiu-se-lhe a leitura "comspulsiva" de nossos grandes poetas românticos, Gonçalves Dias à frente. Aos 18 anos, com Poros sem Rumos, conquistaria a primeira de uma série de premiações literárias, uma menção honrosa em concurso da Academia Maranhense de Letras.
Ainda no ano de 1970, Teodisséia lhe granjeraria o Prêmio Cidade de São Luís, façanha repetida no seguinte, com 50 Sonetos. Esses livros, mais Oficina do Verde e Flor & Fauna, jamais os publicaria, por os considerar "sem rigor formal suficiente". Daí em diante, os prêmios se sucederam, coroando não só o poeta, mas também o letrista de música, o ensaísta e o contista. Este, merecedor dos melhores encômios, mas ainda inédito em livro, foi laureado no Concurso de Contos Edgar Allan Poe, realizado pelo Centro Acadêmico do Departamento de Linguística da Universidade de Brasília, em 1984, por "Matança ou Hipérbole do Sido."
Desdde 1972, vem participando de antologias poéticas, dentre as quais as organizadas por Carlos Cunha, Nascimento Morais, Filho, Jomar Moraes, Napoleão Valadares, Assis Brasil, Vili Santo Andersen, Waldir Ribeiro do Val e Salomão Sousa. A edição do livro sólo teria de aguardar até 1984, quando sairia Manhã Portátil. Em 1986, 1988 e 1994 viriam Onipresença,
A Lâmina do Grito e Sáfara Safra, todos vencedores do Prêmio Sioge – Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado do Maranhão. Aguardam vez a edição completa de Onipresença e o inédito Voo Avesso, a par de outras obras em prosa e em verso.
Sobre a poesia de Viriato manifestam-se elogiosamente João Mohana (padre e escritor maranhense, que o orientou em suas primeiras leituras), Manoel Caetano Bandeira de Mello (que lhe assinala o "surpreendente domínio formal e conhecimento técnico"), Cassiano Nunes (que lhe prognostica um lugar "entre os maiores da Poesia brasileira"), José Chagas (que não hesita em aponta-lo como um grande poeta), Odylo Costa, filho (que o afirma "fadado" ... a figurar entre os grande ... do Brasil", Lago Burnett (que o declara "poeta absolutamente senhor de seu instrumental").
E assim muitos outros, de que passamos a transcrever os trechos.
Assis Brasil, e Poesia Maranhense do Século XX (Sioge/Imago, Rio de Janeiro, 1997):
De fato, o poeta domina a sua linguagem. Preocupado com a forma,
tem a predileção pelo soneto, o decassílabo bem elaborado, com
ritmo, métrica e rimas, ao gosto da melhora tradição. Para um poeta
jovem, da década de 80, é de admirar essa sua desenvoltura técnica;
Mas não fica só nesse aspecto formal, e bem realizado, a poética de
Viriato Gaspar. Ele exercita outros metros no seu próprio livro de
estreia, o que indica que já estava tecnicamente amadurecido.
Moacyr Félix destaca-lhe o "bem elaborado artesanato", e Chagas Val comenta: "Um trabalho absolutamente superior e de uma expressividade e beleza que nos atordoam, por nos levarem ao quase paroxismo de uma verbalização contundente e exasperadamente rica e bela".
Heitor Martins observa com sagacidade:
Viriato Gaspar tem seus melhores momentos quando retira a carga
de significado subjacente ao cotidiano, vendo com olhos novos o que
geralmente passa despercebido. Sua poesia é, neste sentido, uma visão que perfura a superfície da realidade que nos é dada pela
compulsão dos sentidos.
Do prefácio que redigiu Oswaldino Marques para a segunda edição ição de Onipresença extraímos alguns trecos. Atende-se à linguagem característica do grande poeta e ensaísta:
O que logo faz deflagar a atenção à leitura dos sonetos incluídos é a
perícia com que o Autor faz acionar a corrente comutativa entre os
integrantes do estrato sonoro, tornando-os tão gerativos que o teor
semântico das unidades sintáticas como que se evapora, restando-
nos apenas a intertextura — cartilagem e nervos — do organismo
criado.
É de extrema operacionalidade a linguagem de Viriato Gaspar.
Interessa-lhe tão só, na produção lírica, aquilo que funciona, a saber,
o que é capaz de direcionar seu concurso ao impulso tectônico
subjacente.
De poucos poetas de sua geração se pode dizer que, muito além de
uma técnica, dispõem de uma tecnologia, ao molde dos recursos
convocados pelo escritor que ora nos escapa.
A lição de modernidade que mais absorventemente ele assinalou se
desdobra contígua à exatidão perceptiva, à eficácia da dicção e à
recusa à subjetividade emoliente que permeia os meatos do tédio
melodioso.
É assim que sua expressão se revela crispada, cortante,. a trair não
raro um timbre rouco que emana de estruturas eletivamente
dissonantes, sem contraste com a modulação pretensamente
"eufônica" do discurso lírico tradicional.
[...]
O virtuosismo, o domínio formal inegável do Autor põem-no a salvo
do pecado capital do cultor da palavra escrita — gerar a indiferença.
Nada mais instigante do que uma criação sua [...]
Uma influência ganha relevo em coexistência com as já apontadas:
é a do grande poeta paraibano, maranhense por adoção, José
Chagas. Adepto confesso da sabedoria lírica do extraordinário autor
de Os Canhões do Silêncio, Viriato Gaspar buscar afinar-se pelo
diapasão do Mestre, mas o faz com pleno domínio artesanal e
autonomia de voo [...]
Viriato confessa, aliás, influências outras, com a de Bandeira Tribuzzi e a
de Nauro Machado; mas, conforme salienta Oswaldino, preservando
sempre a sua individualidade poética.
Depoimento percuciente e sensível é, também, ao deixou Clóvis Ramos,
em carta ao poeta que homenageamos:
Viriato Gaspar é um caso à parte na literatura que se pratica hoje. Sob uma dicção aparentemente (ou enganadoramente) clássica, de
completo assenhoramento formal e de domínio pleno dos recursos
da linguagem poética, maneja um verso moderno, cortante, incisivo,
que retalha a realidade como um bisturi aguçado, e convulsiona e
inquieta nossa sensibilidade, levando a verbalização a paroxismos de
beleza e encantamento.
Já se disse que todo grande poeta é necessariamente um grande
pensador. Destaquem-se em Viriato os lampejos poéticos,
verdadeiros mantras que imantam e imanizam seu verso, aqui
e ali, com autênticos "achados" que nos deixam atordoados e à
mercê da magia encantatória da boa, da verdadeira poesia.
Wilson Pereira, prefaciando Sáfara Safra, assinala os seus grupos temáticos,
iniciados pela "ideia de voo" a sugerir "partida, saída, libertação, busca,
viagem, despedida, ascensão, mas também chegada, pouso, descanso,
encontro". "O poeta — acrescenta — "é um passageiro de si, em busca
de si, em constante travessia." Na terceira parte, "A Navalha Acesa", com
"poemas de teor social e político, de questionamento e crítica a certos
valores da sociedade brasileira", registra a presença da ironia e da sátira,
e na quarta, "Os Andaimes do Dentro", a reverência a outros poetas.
Diz, ainda, ser aspecto importante na poesia de Viriato que, "a par do
refinamento linguístico e formal de que são dotados, seus poemas não são
jamais o resultado de um artificialismo verbal e técnico, porque, antes, têm
substância, têm significação, têm vida pulsando seu sangue nos versos.
São dignas de destaque estas palavras:
A poesia mora no interior de seus poemas e vem brincar nas
janelas. Não são meras fachadas, não é demagogia poética.
A poesia não é linguagem, apenas, é "linguagem carregada de
significados", como ensinou Ezra Pound. Um poema oco é uma
fenda ofendida. Um poema, como uma bela mulher, não deve
ser frio, vazio. O poema tem de significar sua beleza. A aura, a
alma do poema é a poesia. Viriato tem o que dizer e faz
bendito o poema.
Não se quer dizer, no entanto, que o poema tem de ser sempre sobre
"temas nobres", sobre agruras e alturas. O poema pode ser uma maneira
divertida de brincar com o pouco, de dar nada algum sentido. Mas o poema, por mais simples, tem de ser de palavras, que faz sentido.
É interessante que prefaciador e prefaciado, poetas, têm semelhanças
bem palpáveis no tratamento que dão a pelo menos dois pontos das
respectivas vivências: o tema da infância e o da dispersão do eu, de tão
bela tradição na literatura de língua portuguesa. O poema "A infância",
de Viriato Gaspar, é, de resto, dedicado a Wilson Pereira:
não é sombra, o sobrado ou a maresia.
só a porta
e o quintal que ela escondia.
No segundo ponto, a aproximação é ainda mais nítida. Wilson, em cujo
Menino sem Fim a temática é insistente, diz, por exemplo, em "Prometeo":
O menino
que fui
crescendo
foi-se
diminuindo
de mim nu indo.
E em "O Menino":
O menino em mim
ainda se comemora:
............................
O menino em mim
ainda cresce
e me leva embora,
Viriato em "Eule":
e toda vez é assim:
com pressa, passo por mim,
estaco, em susto, ela para,
nos olhamos cara a cara,
nos sorrimos e, por fim,,
eu vou-me embora de mim.
Nada mais do que pontos de contacto, é claro. Mas significativos de uma
afinidade.
A propósito de temas, lembro um verso de Viriato Gaspar que resume
o conteúdo humano de sua poesia: "O homem é a matéria do meu
canto". Forte e belo verso! Leiamos o soneto em que se engasta, na
abertura de Manhã Portátil:
ÍNDICE
(a Ferreira Gullar)
O homem é a matéria do meu canto,
qualquer que seja a cor do que ele sente.
E não importa o motivo de seu pranto,
é um homem, meu irmão, e estou doente
de sua dor, e é meu o seu espanto
do mundo e desta hora incongruentes.
Na trincheira do Verbo me levanto
contra o que contra o homem se intente.
O homem é o objeto e o objetivo
de quanto sei cantar, e o canto é tudo
que pode me explicar porque estou vivo.
Às vezes sou ateu, noutras sou crente,
em outras sou rebelde, em algumas mudo:
— sou homem, e canto o homem no presente.
Sim, o homem é a matéria do poeta, com suas dores e sua metafísica, com o amor carnal e familial, presente em numerosos poemas e
dedicatórias, com o tônus social e a pura inquietação de existir, com as
esperanças e as saudades, enfim, tudo o que orbita no âmbito humano. Sobretudo a dor, própria ou alheia, , que ele sente inteira: "a dor de cada
um, que a minha expia", diz ao fim do soneto seguinte: "Prefácio". Matéria essa que se enforma ao pulso de uma arte rigorosa. O poeta, "intérprete do universo", faz
... sangrar o alfabeto
na carne viva do verso.
passando a limpo o momento,
plantando fundo uma lavra
de fogo, de fúria e vento
no duro chão da palavra.
(Final de "Poemas", em Manhã Portátil)
Mais uma vez escrevi sobre a poesia de Viriato Gaspar. Comentando A Lâmina do Grito, de 1988, disse, e quero agora repeti-lo, ser ele um poeta de linguagem dos oficiantes de uma poesia fran-
camente verbal, francamente versifica, músico-imaginística: uma poesia que requer flama e conhecimento de mister, e que, ao desa-
brigo dos veículos reputados maiores, continua resistindo às sereias
pós-vanguardistas da não significação, do não sentir — do não ser.
Em Manhã Portátil — prosseguia —, o poeta surge feito, praticando com desenvoltura tanto o decassílabo quanto metros menores; não desprezando o verso livre, o emprego de recursos gráficos, a invenção linguística (por exemplo, "amor-te"); enfim, no essência — em tese e em práxis —, respondendo à pergunta "o que botar no poema / e o que dele retirar?.
Em A Lâmina do Grito — continuo na trilha daquele velho artiguete — reencontrarmos essas qualidades, a que devemos acrescentar um certo jeito surrealista de convocar palavras por repercussão vocabular — uma espécie de palavra-puxa-palavra que ajuda o poeta em sua bem sucedida tarefa de coreografar a encantatória dança verbal. Pródigos em versos e imagens de impacto ("a tarde emaranhou-se em meus cabelos"...), "um verso esse universo em carne viva", "anêmona do espanto"...), é difícil selecionar os melhores dentre os sonetos de que se compõe o livro; arriscaria, entretanto, indicar o terceiro, o décimo, o décimo quinto, o vigésimo quinto, o trigésimos e o trigésimo quinto.
Sobre Sáfara Safra (ambos os textos se encontram em meu Sob o Signo da Poesia), enfatizo que, em feliz contradição ao título, é fecunda a sua paisagem, ria em vales bem cultivados e em sobranceiros picos. Aí resplandecem, até, às vezes, em mais alto grau, o vigor e o refinamento que patenteavam os livros anteriores. E arrolo alguns dos frutos de minha predileção, a saber; "O Poema", "O Restelo", "O Banquete", "A Logopéia".. "Fremilúnio" (em cuja última estrofe o jogo verbal, com ser virtuosístico, é funcional e produz esplêndido efeito), "O Carrapato", "O Legado", "A Falta", "Hacéldama" (excepcional poema, cuja dedicatória me honra e desvanece), "Haiku", "A Gangorra", "O Velho", "Infância".
Viriato Gaspar é poeta de vôo alt e firme. Voemos com ele, acompanhando os poemas escolhidos para o coroamento deste tributo."
Para ler os referidos, poemas acesse:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/viriato_gaspar.html
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